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Foto do escritor: Jura ArrudaJura Arruda

Era de pouco tamanho. Nascera no vão entre o tronco robusto do Ipê e o muro da casa. Era dada à observação, ainda que pouco havia para observar naquele ínfimo latifúndio. Ocorria de, nas manhãs felizes, ver cruzar os galhos do Ipê os raios de sol e um ou outro passarinho. Em dias de chuva recebia da copa da árvore pingos engrandecidos com os quais lutava para manter-se em pé.


Não era vista e pouco via. 


Do outro lado do muro – do mundo, como pensava a flor – um menino passava em dias de aula, detinha-se em dias de folga. O muro era alto demais para que pudesse olhar por sobre, mas podia ver invadir a calçada alguns dos galhos do Ipê. No muro, o menino observava uma pichação, imaginando-a grafite, e passava os dedos sobre uns sulcos que o muro continha e que, talvez um dia o derrubasse, mas que por ora, eram apenas riscos na armação de concreto. Sentar à pouca sombra do Ipê que ele não via por completo e morder matinho era hábito desde que veio para o bairro. 


Não era visto e pouco via.


O que o muro escondia da flor e do menino, e eles não podiam perceber, era a possibilidade do encontro, o simples contemplar, quiçá a admiração. Nem flor, nem menino tinham capacidade de transpor a matéria e enxergar além do que viam. 

Há um muro cobrindo-nos a vista, impedindo-nos de ver flores e meninos. É um muro alto e poderoso que nos impele contra si com força. Há um jardim com Ipê, flores e borboletas diante de nós, mas estamos concentrados no muro. Há uma rua a nos oferecer caminhos, mas estamos concentrados no muro. 


Não somos vistos e pouco vemos.


Vamos mordendo matinho, acreditando estarmos à sombra agradável do Ipê, quando o que nos cobre é a sombra fria do muro, que fora construído com a força do trabalho, que custou dinheiro e tem seu valor. É assim que estamos vivendo: com os olhos no muro, quando há tanto a vislumbrar. Mas o tempo e a vida passam velozes demais e não conseguimos dedicar-nos à contemplação de uma flor pequena com suas pétalas perfeitas, de uma manhã de sol, de uma tarde de chuva, de um menino crescendo.



Esse texto foi lido com reclusos do Presídio Regional de Joinville, num projeto que envolve a Coordenação de Ensino e promoção social, liderado pela professora Tamara e a Academia Joinvilense de Letras. Estive com a professora Taíza Mara Rauen Moraes e a jornalista, escritora e amiga Maria Cristina Dias. A roda de conversa após a leitura foi rica, com interpretações profundas e muita troca. Ao lado, um presente bordado por um dos reclusos.


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Hoje de manhã, eu encontrei um passarinho morto. Não, ele não estava morto, agonizava no chão de minha cozinha. Pouco antes, eu ouvia um piar insistente e monótono, não atentei, ainda que o som parecesse vir de tão perto, ainda que parecesse haver um pássaro dentro de casa.





Saí por alguns minutos para um passeio habitual com os cachorros. Quando voltei, encontrei-o com movimentos de abrir e fechar o bico, mas sem o som de antes, deixei cair umas gotas de água para que ele bebesse. A água já não podia salvá-lo. Sobre a palma da minha mão, ele fechou suavemente os olhos. 


Há outros pássaros cantando lá fora, mas ainda ouço o piar monótono, prenúncio de sua morte. Partir é canção de uma nota só.

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Coluna: Nossos dias | Folha Metropolitana

Por Jura Arruda

@juraarruda_escritor



Tenho ouvido a frase aí do título. Há anos. E ando mesmo a concordar, porque a política é mesmo um saco onde se tem jogado muita coisa fora. Ao escolher um candidato, e o termo "escolher" aqui é incoerente na maioria das vezes, estamos jogando no saco nosso descaso, nossa incompreensão do que é este sistema que se propõe organizar a sociedade de modo que haja a possibilidade de convívio e igualdade; que dá voz ao povo através de seus representantes. Sendo prático, ao "escolher" qualquer um, sem saber suas intenções, sua ideologia, seu passado, sua posição diante de grandes questões humanas, eu posso estar colocando um lobo para cuidar de ovelhas. Quem eu escolho para me representar deve ter, no mínimo, as mesmas ideias de sociedade, de ser humano, de justiça e de liberdade que eu. Mas este "eu" também deve estar com ideias bem definidas, a partir de um entendimento de mundo, do viés humano da sociedade e, se possível, das estruturas de poder. Mas, acima de tudo, imbuído de tolerância e empatia, de sensibilidade e senso de justiça.

Bem, as estruturas do poder são complexas mesmo para quem faz parte delas, contudo, é fundamental saber que, basicamente, o dinheiro navega pelos corredores e determina a ética, a moral e o caráter dos tais representantes. Este dinheiro, crianças, não está em suas mãos, nunca esteve. Ele é arma dos poderosos e pode tanto convencer ou fazer mudar de opinião os mais conscientes membros das instituições de um Estado, quanto transformar mentiras e boatos em verdades incontestáveis. Mas isso só é possível porque vivemos a triste realidade da falta de informação, porque somos impactados por qualquer mensagem, em outras palavras, caímos em qualquer conto do vigário, ainda que seja inconcebível a sadios olhos nus. Só é possível esta realidade em que dinheiro vale mais do que pessoas, porque jogamos nosso voto no saco sujo da política corriqueira e cruel.

Os semáforos da cidade estão repletos de bandeiras e pessoas sorridentes que aproveitam a parada dos carros para oferecer panfletos e falar de seus "escolhidos". Recebi numa única parada de 30 segundos material de campanha de três candidatos a vereador, prometendo o impossível, coisas que não dizem respeito ao seu cargo, porque são definidas por lei federal. Um deles, colocou sua religião acima de tudo, e isso é grave, porque política é movimento social, é ferramenta para oferecer dignidade aos que vivem numa comunidade; a religião, por sua vez, é relação íntima com as divindades, é caminho particular, é ferramenta de curar a alma, não bandeira, convicção ou fé a se empurrar goela abaixo. Cada um tem seu caminho para se "religar" ao divino. E mesmo isto, a gente precisa ponderar na escolha de um candidato. Ou continuaremos tratando a política como um saco, e sendo tratados como gado, rebanho que não sabe olhar para cima.


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